sexta-feira, 29 de maio de 2009

o libertino e a prostituta (parte II de IV)

outra noite.
o jovem, de cabelos desgrenhados e fundas olheiras entra em um boteco, na região próxima ao porto, e à zona de baixo-meretrício da cidade.
o boteco tem cara de estar aberto há décadas, e pelo estado dos freqüentadores, parecia que os mesmos estavam lá desde a inauguração.
o balcão, de um azul desbotado, com eras de crostas de poluição e gordura acumuladas, tinha sobre si apenas uma pequena estufa, onde viam-se alguns salgados de aspecto repulsivo, e inúmeras moscas, indecisas se teriam coragem de se alimentar daquilo.
nas prateleiras atrás do dono mal-encarado, incontáveis garrafas de bebidas baratas, refletidas por um espelho escurecido pelo tempo. pareciam encarar quem se aventurasse à entrar lá, desafiando se teriam coragem de virar um trago ou dois daqueles venenos legalizados. e numa mesa ao fundo, os velhos decrépitos, que encaravam soturnamente o intruso, interrompendo momentaneamente seu jogo de dominó.
ele sentou-se sem olhar ao redor, num dos bancos giratórios diante do balcão, e pediu uma dose dupla de conhaque. tomou-a de uma só vez e pediu outra, a qual foi bebendo lentamente, enquanto fumava um cigarro amassado, tirado do bolso traseiro da calça jeans.
as horas se escoaram lentamente, assim como a bebida do copo de Lucas, e a noite foi avançando, cada mais fria, com a chuva e o vento açoitando quem fosse louco para enfrentar a noite.
por volta das 23 hrs, entra uma mulher. gorda, de maquiagem berrante, roupa escandalosa e justa, que apertava as dobras flácidas de seu corpo, expressão vulgar e cansada e um modo de andar requebrando que poderia ser classificado de qualquer coisa, exceto sexy. obviamente era uma prostituta pouco-requisitada que desistira de ficar na chuva, esperando por clientes que não apareceriam.
sentou-se no banco ao lado de Lucas, e pediu um copo da cachaça mais barata. tomou um gole, olhou ao redor, sem reparar a mancha de batom que ficara no copo, e bebeu mais um pouco. depois encarou fixamente para o rosto do jovem que bebia ao seu lado.
-hey, me dá um cigarro desses, garoto?
-toma.
-tem onde passar a noite, garoto?
-eu não vou pagar por sexo, velhota, muito menos com alguém tão escrota quanto você.
-eu não tou oferencendo meus serviços, moleque mal-educado. só dá para perceber claramente que já há alguns dias que você não dorme um sono decente, nem toma um banho. estou te oferecendo uma troca.
-eu não vou transar com você, já disse.
Lucas se levanta, irritado, e paga o dono do bar, ignorando a mulher que continuava a falar. sai noite afora, procurando com os olhos algum lugar coberto onde pudesse passar a noite.
-ei, garoto! espere! eu estou falando com você!
ele pára, e puxa a faca que guardava no bolso.
-já disse que não vou transar com você, velha infernal, e nem vou gastar meu dinheiro da bebida com alojamento com uma mulher porca e velha como você! se manda!
-eu não quero sexo, pirralho burro. eu só preciso conversar. você se parece muito com meu filho. eu até lhe dou o dinheiro que tenho, mas por favor, venha comigo!
Lucas abaixa a faca, atordoado.
-quanto você vai me dar, por essa "troca"?-diz, com voz ainda um tanto ressabiada.
-tenho só 60. mas você pode dormir tranquilamente no meu apartamento, e tomar um banho decente... também tenho algumas roupas do meu filho, certamente servirão em você. estamos de acordo?
-ok, você venceu. mas é só porque meu dinheiro está acabando. e se você tentar alguma gracinha...- e mostra a faca novamente.
-eu não tentarei, não é porque sou puta que não tenho caráter.
...
a velha prostituta morava num barraco que outrora podia ser chamado de prédio.
as escadas, escuras, tinham o chão escorregadio, de tão gasto; e a pintura da parede descascava, mostrando várias gerações de pinturas diferentes.
os corredores eram estreitos, e cheiravam fortemente a urina e mofo.
pararam diante de uma porte onde a sombra de um 19 ainda persistia, mesmo que os números já não estivessem lá há muito.
a mulher gorda revirou a pequena bolsa demodê, e logo encontrou as chaves, com as quais abriu a porta com uma rapidez assombrosa considerando a escuridão que reinava.
entraram, e ela logo acendeu a luz, mostrando um cenário tão desolado quanto o resto do prédio.
era um quarto, com apenas um armário de portas semi-abertas, empenadas; uma mesa apoiada em uma velha bíblia, ladeada por duas cadeiras em estado tão deplorável quanto todo o resto; uma cama de metal com um fino colchão sobre ela; as paredes descascadas de várias cores, ainda tingidas pela umidade e uma porta meio rachada que dava para um banheiro minúsculo de azuleijos outrora brancos, agora amarelados pelo tempo e pelo evidente desleixo na limpeza.
-sente-se. volto logo.
Lucas sentou-se numa das cadeiras e acendeu mais um cigarro. pensava onde estava com a cabeça para acompanhar aquela velha, que sequer conhecia, e que talvez tivesse que espancá-la muito para conseguir ganhar sua liberdade novamente. mas logo pensou que nada mais tinha à perder, e então relaxou um pouco.
a mulher voltou, vestida com calças e blusa de moleton, e sem aquela maquiagem bizarra. parecia ainda mais velha e miserável.
-tome, seus 60 ..., estão um tanto amassados, mas valem tanto quanto quaisquer outros.
-obrigado.
-tenho uma garrafa de vinho barato, e umas duas de whisky nacional. espero que sirvam.
-claro.
ela levanta-se, abre uma das portas e pega a uma das garrafas de whisky e dois copos.
-acho que não fica bem beber no gargalo com uma prostituta, né?- e dá uma risadinha amarga.
abre a garrafa e serve nos dois copos. e então começa a contar sua história.
a mais amarga e comum das histórias.
aquele tipo de história que magoa ouvir, tanto quanto magoa contar.
aquele tipo de história que marca, e machuca, mostrando-nos como somos impotentes diante das desgraças do dia-a-dia.
a primeira garrafa de whisky se esgotou como se nunca houvesse existido, e uma segunda e uma terceira se seguiram à ela.
e Agnes, que era o nome da velha prostituta, continuava sempre a contar, a contar e a contar...
...
a história que Agnes lhe contara, atingira Lucas como uma punhalada no peito.
era espancada como menina, era espancada pelo homem à quem se entregara, depois abandonada grávida, num estado tão lástimável que quase perdera o bebê.
trabalhara em dois a três empregos para dar o que não tivera ao seu filho, o primeiro amor verdadeiro que tivera em sua vida.
e então perder tal amor para as drogas.
tentara morrer algumas vezes, e falhara em todas.
fora internada em hospitais psiquiátricos que deixariam muitos filmes de terror com vergonha.
e então, já velha (pelo menos em aparência, tinha menos de 50 anos), entregara-se à prostituição, por não ter mais forças nem motivo para batalhar por um emprego decente.
e aquela história, tão amarga e comum, o fez pensar em tudo que ele também passara, e nas vidas que destruíra pelo caminho...
...
e o whisky continuava a se esvair, como se nunca tivesse existido.