quinta-feira, 26 de março de 2009

o libertino e a prostituta (parte I de IV)

a chuva e o vento gelado entravam impiedosamente pelo buraco na janela. as finas e puídas cortinas sussurravam e dançavam ao sabor da tempestade que assolava a rua lá fora, como fantasmas de todas que já haviam cruzado seu caminho alguma vez.
a cama, velha, de madeira carcomida por muitas gerações de cupins, rangia a cada mínimo movimento que fazia, sentado ou deitado, tentando vencer a sarcástica insônia que o agarrava e não o deixava em paz.
ele não queria ficar acordado, seus pesadelos já pareciam doces sonhos perto dos horas de vigília, a torturar-se com todos seus pensamentos, lembranças de seus erros, memórias de suas mágoas sem fim.
o gosto amargo de incontáveis cigarros e doses de bebida não largavam mais sua língua, o preço da boemia não lhe parecia mais tão vantajoso, mas também era um caminho que não tinha mais volta.
os corações que partira; as vidas que desgraçara; cada um dos jovens mancebos, puros como anjos, e romanticos como donzelas do passado que ele pusera a perder, levando-os como seus aprendizes à botecos obscuros e lugares de reputação duvidosa; nada poderia apagar seus atos impensados, e inconsequentes.
levantou-se da cama barata, olhou no rádio relógio ao seu lado: 3:47 da madrugada. levantou-se. caminhou cambaleante até o banheiro, urinou, lavou as mãos, o rosto, molhou os cabelos compridos e mal-cuidados e voltou para o quarto. uma barata rondava um cinzeiro transbordante. soltou um palavrão e resolveu deixá-la onde estava. pegou a garrafa de whiskey barato ao seu lado e deu uma tragada longa, até sentir queimarem suas entranhas. acendeu o cigarro de marca duvidosa que estava no maço amassado em seu bolso, puxou com ânsia a fumaça cinza-azulada, e deu outra tragada no whiskey.
olhou ao redor, parou numa bíblia desbotada e corroída por traças, jogada numa gaveta que não fechava mais. engasgou-se com a fumaça ao rir da ironia daquilo. o que fazia uma bíblia sagrada no quarto de um ateu libertino e desgraçado como ele?
pensou então em louise, e como ela também era um contraste tão trágicamente irônico em sua vida; pegou seus poucos pertences (a saber: uma carteira velha, uma jaqueta de couro tão velha quanto a carteira, o maço de cigarro e a garrafa de whiskey), deu uma última olhada na bíblia, quebrou mais o vidro da janela,deixou bastante de seu sangue escorrer pela cama e pelo quarto, até ficar tonto pela perda de sangue, estancou o sangramento com um farrapo arrancado duma camiseta que ia para o lixo, deixou a porta do quarto aberta, com a chave caída por perto, e desceu, quase tão furtivo quanto um gato, a escadaria do prédio onde estava. parou pouco antes do fim das escadas, deu uma boa olhada no porteiro... aquele não acordaria antes do sol raiar. então tratou de pegar as notas que tinha dado ao velho como pagamento pelo aluguel do quarto por aquela semana (ele entrara no quarto 5 dias antes, e ninguém o vira desde então), e sumiu pela tempestade, misturando-se com as sombras sujas da Cidade do Pecado.


[título provisório, se eu não pensar num melhor, fica esse mesmo]

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