sábado, 7 de março de 2009

Rota de Fuga

Todas as pessoas correm. Claro, por motivos que somente cada uma delas sabe, o porquê disso tudo. Mas não há melhores motivações que o medo e o desespero. Não importam as ruas, vielas, montanhas, becos ou tudo junto... Não mais. A vontade de fugir que o medo proporciona-nos é tão exorbitante quanto a falta de bom-senso das pessoas. O desespero faz-nos correr pelas ruas desenfradamente, indiferente se irá a algum destino ou não.
Mas, por mais que nós nos ponhamos a correr e correr até os pulmões explodirem e o cérebro fritar, sempre voltamos ao ponto de partida
Nada

Certa noite, voltando de uma de suas festanças corriqueiras, Joseph aproveitava o resto do franco entusiasmo e euforia que o álcool tinha por fazer em seu corpo, mesmo que não estivesse alcoolizado, ele poderia aproveitar uma boa meia hora de êxtase alcoolizado com diversão noturna. Um entretenimento bastante fútil, mas que livrara-o da melancolia e solidão muitas vezes.
Somente nessa noite, havia conhecido umas 3 pessoas novas. Obviamente elas lhe eram indiferentes como pedras no meio de uma colina, mas o ser-humano, sem exceções, necessita do contato-social para sentir-se acolhido, forte, superior. Havia trocado fluidos corporais com uma garota que, até aquele ponto, já havia esquecido completamente seu nome e rosto. Mas isso tem alguma relevância na juventude? Não digo juventude de idade, mas sim mental.
Se a vida for somente um conglomerado de fatos que se esquecesse hora ou outra. Qual seria a razão do arrependimento? Doravante, o arrependimento depende de você.
Joseph sempre crera que era uma das pessoas mais fortes do mundo. Não forte de porte físico, mas forte em sua imponência, sua altivez. Não tinha nem um pouco do que as religiões falam com tanta avidez, o "auto-reflexo". Sua vida resumia-se ao presente, ao hoje, ao agora. Seu pasado e seu futuro eram somente as invenções e promessas sussurradas de ouvido em ouvido que nunca chegaremos a saber e que não tem importância. Ele era apenas uma comum. Desde os seus vícios até seu modo de pensar. O que que um cigarrinho, truco, mulheres e inconsequência há de fazer-nos mal?
Não havia por que não passar ao seu lado, no meio da madrugada e o achar completamente indiferente.
Camisa vermelha sem estampas, jaqueta e calça igualmente de jeans azulado, tênis All-Star. Sem anéis ou quaisquer tipos de bijuterias, olhos e cabelos castanho-escuros, estatura mediana e um contorno de rosto simpático.
Um cidadão desse porte poderia ser um meliante julgado, desprovido de provas ou simplesmente a encarnação do mal? Nesta rua deserta?
Dificilmente.

Joseph já estava a alguns passos de terminar o quarteirão e entrar em uma rua mais movimentada: luzes, carros, pessoas, poluição, etc. Poderia estar melhor e mais seguro que naquele beco escuro de casas mal cuidadas. Apesar das sílabas "Me-Do" não encaixarem-se em seu dicionário, "Melhor prevenir do que remediar" era um de seus lemas de vida.
Ao entrar na avenida, nada de diferente, a calmaria em seus passos eram iguais, ecoando nas ruas desertas e voltando aos seus ouvidos, nenhum ser vivo em seu encalço ou companhia. Mantinha seus pensamentos eufóricos a todo vapor. A diferença da calmaria que sentia agora e a paciência de cinco minutos atrás, eram os carros que passam velozmente perto dele, o barulho de uma cidade semi-morta soando em seus tímpanos, um belo réquiem inexistente. Uma sinfonia que lhe agradava, lhe acalmava. Fazia deixar de lado todas as guerras, pobrezas, fomes, hipocrisias, problemas, vergonhas... Enfim, tudo. A cada passo que dava, seu ego inflava-se de auto-confiança e prepotência. Era o dono do mundo naqueles breve instantes. Seguiu com mais ânimo rumo à sua casa.
O relógio público marcava exatamente 01:16 e ele nem se importava com isso. "O relógio só existe para os compromissos" divagava ele. Nada de relevante. Somente lhe importava a liberdade que sentia, a realidade que podia agarrar em suas mãos, todo o tempo que lhe fora concedido para viver sem objeções. Mesmo que falhas, em seu todo.
Nosso personagem sabia, mais do que qualquer outro, que a felicidade não existe, que o paraíso é uma mentira. Mas não custava aproveitar os momentos de esquecimento e empolgação.
De súbito, surgiu em sua frente uma moça comum, típica de uma noite fria, andando em passos inseguros e incertos rumo ao nada. Passos contínuos e meio que apressados ecoando junto aos seus tornando disso tudo uma ode à solidão.
"Garota bonita" pensou Joseph sentindo seu leve e doce perfume exalando de seu pescoço coberto pela lã. Odor que desapareceu em alguns instantes.
-A noite nunca morre, apenas dorme - sussurrou com um sorriso no rosto, com um sorriso de indescritível euforia. -Quem não há de adora-la?
Prosseguiu vitorioso. Rumo ao universo de seus sonhos.
A nossa, invariável, felicidade certeira.

Alguns instantes depois, começou a atacar-lhe o sono, o terrível vilão da consciência e, consecutivamente, uma vontade inexorável de chegar logo em sua casa e descansar. Aproveitar que não sofria de insônia e velejar , mergulhar o mais profundo possível em seu sub-consciente em um coma voluntário e acordar repentinamente com um despertador histérico que ele tanto detestava, pronto pra tudo e todos, o mundo inteiro. O que o animava é que já estava a 2 blocos de sua moradia que tanto ansiava, quase no fim da avenida.
No momento em que estava na parte final daquele quarteirão, em frente a um banco municipal, uma viatura policial estacionou de súbito perto dele e finalizou por parar bem perto de onde ele estava. Dentro dela, saíram quatro policiais armados não de 9mm como de costume, mas sim de fuzis de porte militar, correndo em direção ao portão entreaberto do banco onde Joseph encontrava-se naquele instante. Correndo alucinadamente, como que em busca de sangue de sua infeliz presa. Prontos para matar e morrer em sua própria honra e seus princípios.
Ao ver as armas, os políciais, seus olhares amedrontadores, Joseph sentiu de leve um calafrio percorrer a espinha e o coração gelar. Um terror absurdamente imenso mixado com o medo.
Viu tudo que poderia ver a sua vida inteira, as viseiras lhe foram arrancadas em um puxão só. Absolutamente tudo. O sono, a auto-confiança, a prepotência, a euforia, sua existência toda desvaneceu-se num piscar de olhos. Somente refletia em seu globo ocular aquele instante, os passos apressados e silenciados pelos coturnos.
Pensou no que fazer, a sua inteligência de que todos admiravam poderia salvar-lhe daquela aflição. Ficar e enfrentar. Inventar o que falar. Agir friamente. Andar como se nada tivesse acontecido ou ocorrido. Mas, cara a cara com o desespero tudo é em vão.
Correu
Correu
Correu
Correu desesperadamente sem rumo para qualquer lugar, longe.
Correu e se perdeu.
Afugentou-se por entre latas de lixo, próximas a um córrego... Silêncio... Joseph esperou para ver se algo aconteceria. Exceto o vento soprando não ocorreu nada de anormal.
Estava só.
Completamente só

Fechou os olhos e respirou profundamente em busca de uma saída, não só naquele lugar, mas de tudo que lhe passava na mente. Mordeu os lábios e gritou, urrou em um silêncio bizarro que acordou completamente a vizinhança. Acocorou-se e pôs as mãos sobre a cabeça, ainda suspirando e procurando acalmar-se, de alguma forma. Procurou em absolutamente tudo, um refugio de todas as assombrações de seu ser. Quando começou a achar tudo mais calmo, capaz de seguir adiante, prosseguiu.
-Abracadabra -Disse ele abrindo os olhos.
Os becos escuros ainda eram amedrontadores mas ele já não sentia mais medo, somente angústia. Levantou-se vagarosamente e pôs-se a andar rumo onde estivera e conseguir achar a sua casa. Notou nesse percurso que estava COMPLETAMENTE perdido. Tal susto o fizera correr de uma forma tão bestial que não deu por si onde estava até que notou: Estava só, e na escuridão da noite que ele tanto adora.
Como voltar?
Siga a Luz inexistente!
Andou por alguns becos imundos e iguaizinhos todos. Cansou-se de sua peregrinação infrutífera e largou-se no chão pela exaustão físico-mental.
-Merda -Disse e esmurrou o chão no qual estava jogado.
Fitou a parece e lhe parece que havia um rosto feminino nela, um rosto tímido e de feições delicadas. Rosto que apesar de bem humano, ainda era uma parede. Achou tão idiota a visão que começou a rir de si mesmo, tanto para descontrair como para ocultar o temos que sentia;
Ilusão somente
Uma ilusão tão horrível que era realidade
Aquele rosto, ornamentado de concreto maciço, com as feições mais delicadas que poderia esperar-se de um objeto inanimado continuou fincado ali mesmo, dormindo confortavelmente. Joseph não acreditava no que estava diante de si. Num súbito, o olho direito daquela "Escultura" abriu-se e a íris daquela singularidade começou a apontar pra Joseph. Não era somente seus contornos que eram belos, seus olhos também eram.
Difícil de crer, para ele, que aquele rosto imenso, quase do seu tamanho, e que o fitava tão pesarosamente era a sua prima. Prima que ele amou, seja num sentido, seja noutro. Aqueles olhos eram inigualáveis.
Conforme a boca começou a, lentamente, mover-se tentando dizer algo a Joseph, ele começou a tremer e suar frio e não quis esperar ela terminar a palavra pra começar a Correr, correr e correr rumo à sua salvação naquele "Beco de assombrações".
De soslaio, ele via pedaços de brinquedos destruídos (carrinhos de ferrari, soldados), pedaços de pano, corpos humanos, objetos utilizados também de forma letal, etc. Mas o que mais o impressionou fora ver uma pequena existência branca e felpuda mexendo-se nos mais mínimos detalhes. Algo que não era abstrato e sim real. Aproximou-se com o máximo de cuidado até que aquilo olhou assustado para ele.
Um gato.

-Zigzo... -Sussurrou da forma mais melancólica possível e caiu de joelhos perto do felino que, até aquele ponto, não tinha notado a presença de Joseph, porém o barulho que seus ossos fizeram ao ajoelhar-se fizeram a atenção do gato voltar-se a ele. No mesmo instante, o rabo de gasto ficou em forma de haste, e seus pelo arrepiados, afastando-se vagarosamente daquele homem, já com olheiras absurdas e arfando violentamente com um misto de cansaço e tristeza. -Zigzo!! -Repetiu Joseph e deu um pequeno movimento em direção ao felino que já foi o bastante para fazê-lo correr impassível e entrar no meio da escuridão.
Aquela perda súbita, não só do bichano, mas também de suas mais distintas lembranças o puseram em modo de alerta e saiu em disparada atrás do gato.
Mesmo que tentasse desviar qualquer coisa que viesse a sua mente, foi lhe inegável vir a tona suas memórias com o Zigzo, sua risada alegre e infantil e os miados de temor do gato. O esporte preferido dele era fazer testes com o gato: jogá-lo, espetá-lo e, acima de tudo, assustá-lo. Assustava-o constantemente. Óbvio que não era deliberadamente, era somente uma criança na época. Mas quem dizia que nos males infantis, nós nos damos conta?
Arrependimento, pode-se dizer, impulsionaram-no em buscar uma de suas memórias mais preciosas e mais saudosas.

De súbito, as latas de lixo viraram cortinas, os muros tornaram-se tábuas repletas de pichações e vestígios de chicletes. Abaixo de Joseph, onde ele tropeçou, havia um vaso de cristal. Não era delicado como vidro, e sim firme como uma rocha. Olhou para a sua esquerda, em um desvio que aquele beco fazia, e vira uma árvore em chamas.
Levantou-se, desesperadamente e continuou a correr. Sem parar, puxou de dentro de sua jaqueta um cigarro meio amassado, acendeu-o e continuou a correr, ainda com mais ânimo.
Enquanto escorraçava pelos caminho estreito e escuro, olhava absolutamente tudo, sentia-se perdido no mais cruel purgatório. A sua vida. As sombras engolfavam tudo a seu redor, sem deixar vestígio de quaisquer esperanças.
Pouco a frente, viu uma frágil luz e achou que estava próximo do fim de todo o tormento. Viu, não muito distante, Zigzo correndo graciosamente em direção àquela luz. Impressionou-se com o fato de correr de modo tão veloz quanto ele, mas isso somente o animou e deu mais forças de continuar a correr.
Ao sair daquela escuridão aparentemente infindável, viu o que queria deixar mais distante de tudo. Avistou seus parentes sorrindo sorrisos amarelos, amigos de sua infância que tanto detestava rindo com a mais amarga hipocrisia, inimigos estalando os dedos constantemente, tentando mostrar força e provocar medo, pessoas que nunca vira olhando-o de forma desconfiada e interrogativa. Todos os olhares inexpressívos, o que os tornavam ainda mais aterradores, era como se pudesse perder-se naqueles olhos sem fim. Aquilo tudo, mesmo que próximo, era distante, via tudo como que de forma garrafal. Ainda correndo, cerrou os olhos para esconder-se dos olhares críticos e vazios que o fitavam até sentir o chão oscilando sob seus pés. Chispou com mais anseio até finalmente chegar do outro lado e... Surpresa!
Mais uma selva de tijolos, cipós de panos e árvores de concreto.

Ficou feliz e aliviado por estar distante de tudo e triste por lembrar de quem era, toda aquela "arrogância" que ele demonstrara até certo tempo atrás agora lhe era inútil.
Ainda percorrendo rapidamente (o que também o deixou assustado, não sabia que tinha todo esse fôlego, era uma energia inesgotável que jorrava dele) avistou o gato indo mais devagar, parecia estar cansado. Esta oportunidade de alcançá-lo o fez correr mais rápido. Como se ele mesmo tivesse drogado-se com a esperança.
Enquanto seguia, rumo ao Zigzo, viu algumas lojas no meio da escuridão : Bares, bordéis, fliperamas, lanchonetes, escolas, bancos, vitrines com manequins vivos, açougues e um sem número de coisas.
Um pouco mais a frente viu dezenas de "Josephs" em diferentes jeitos, trajes, maneiras e aparencias.
Notou agora. Como o Flash de uma foto percebeu o que se passava.
Culpava a polícia pela sua imprudência, por ter-lhe causado pânico, mas na verdade ele era o culpado.
Ele era o culpado!
O astucioso ladrão que fugira no último instante de tudo e todos, principalmente de si mesmo. Porém, diferente da realidade, a verdade caiu sobre ele, tudo de sua vida, tudo que ele não havia ainda compreendido esteve a seu lado, a sua frente e atrás, abaixo e dentro de si. Ele era culpado. Assassino de si mesmo. E somente lhe havia um álibi, o auto-perdão.
Poderia, de tudo que ele vira e lembrara-se, perdoar ainda? A vida realmente, em cada um de nós em sua devida intensidade, é algo cruel. No todo, mesmo que vivamos anos e anos a fio, não sabemos o que é viver. Somente achamos que sabemos de algo, sendo que a verdade que julgamos não existe. Nossa verdade, nossa, nossa e nada mais.
No fim do beco, já exausto, o gato parou repentinamente, em cima de uma lata de lixo e fitou Joseph desafiadoramente:
-Trick or treat? Verdade ou mentira? Perdão ou sentença?
Joseph deu um pulo como se saltasse por sobre um mar de lava e agarrou o gato de forma delicada ou toque, porém violenta aos gestos. Caiu no chão junto ao Zigzo.
-BU!! -Gritou fazendo uma careta pro gato que o fitava indiferentemente. Segurando-o da forma mais delicada possível, o abraçou sem o machucar e desfez-se em lágrimas, era agora somente um adulto com alma de criança, chorando o que perdeu, o que fizera de mal. A culpa. A nostalgia. -Desculpe-me! -Encolheu-se com o Zigzo em seu colo e com os olhos fechados.
Tudo não lhe parecia amedrontador, mas sim familiar, era a sua vida.

Olhou para seus braços e vira que estava a agarrar um saco de lixo fedendo a pura carniça. Largou-o gentilmente e limpou as lágrimas abundantes dos seus olhos com os punhos. Ergueu a cabeça e vira a casa logo a sua frente.
Ignorou a porta branca que ostentava o numero 63. Aquilo não importava. Uma vez que estava vivo, queria viver. Escalou pela parede por pequenos fragmentos que haviam nela até alcançar a janela de seu quarto e entrar por ela.
Pela janela fechada, viu absolutamente nada exceto a noite.
De súbito, caiu de costas no chão e começou a gemer e chorar descontroladamente até, depois de meio tempo, adormecer em forma fetal.
Dormira como uma criança que havia se tornado, agradecendo seu passado e sonhando com o futuro
01:18, marcava o relógio.








Ouvindo: Enmurée - Shinjitsu no Ame

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